sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

No Vapor do Tempo - Família Gaiotto - Cerquilho/SP




           "Assim é, se lhe parece" – Luigi Pirandello

       Com a alegoria poética da memória, inicio relatos sobre alguns fatos marcantes da história de Cerquilho/SP e dos imigrantes que no século XIX vieram para o Brasil e se instalaram na cidade onde já havia uma sociedade constituída por fazendeiros e antigos escravos.

          Não sou historiadora; debruço-me sobre a formação da identidade cerquilhense, resgate de sua força cultural, crendices, culinária, linguagem, mitos e lendas, sobre o que me contaram e me parece ser.
        O inverno rigoroso de 1891, na pequena Mareno di Piave, província italiana de Treviso, região do Veneto , Itália,  trazia prenúncios de despedidas a algumas famílias que às margens do Rio Piave viviam durante séculos como lavradores nas terras de nobres famílias. O norte da Itália, devassado pelas batalhas de conquistas e pelo início da industrialização favoreceu a emigração dos camponeses sem terra para cultivar, com propostas de vida melhor na América.
 Os ventos dos Alpes italianos perfumados de lariços, os belos pinheiros, sopravam esperança àquela gente que durante séculos lutara contra invasões para manter a autonomia de Veneza e, à sua tradição milenar, acrescentara influências das riquezas culturais, artísticas e religiosas dos povos invasores.
Entre esses bravos italianos que estavam de malas prontas para embarcar no Porto de Gênova e atravessar o Atlântico em dezembro de 1891 encontravam-se a família de Antonio Gaiotto, meu bisavô e, entre seus filhos, meu avô, Luiz Gaiotto e os primos Pietro Gaiotto e Giovanni Gaiotto
         Desembarcaram no Rio de Janeiro no início do ano de 1892 após dura jornada a bordo do Vapore 164. Trouxeram sementes de plantas regionais italianas, imagens da Santa D’Amore (pergaminho do ano 1.300) e de Santo Antonio de Pádua, um quadro da família Real , Rei Humberto I e Margarida de Savoia, livros de orações católicas, ferramentas e um harmônio portátil, instrumento musical de teclas, cujo funcionamento é similar ao de um órgão com som de acordeão. De uso doméstico, tornou-se típico em igrejas. Chamavam-no de parússula e, ao som do instrumento, cantavam e dançavam para atenuar as dificuldades da viagem. (Acervo da família de Pedro Gayotto).
Sabiam que não haveria retorno à Velha Itália, por isso se uniram e, com muita garra pisaram em solo brasileiro. Marcas da tradição laboriosa, musical e religiosa da família, trabalhavam  duro nas fazendas de café e nos vinhedos, mas aos domingos promoviam encontros festivos e em suas rústicas carroças levavam a alegria para outras fazendas após as orações nas pequenas capelas que eles e outras famílias erguiam. O harmônio do meu bisavô sempre os acompanhou; as mulheres e as crianças participavam dos corais.

 “Eles deram seus músculos, corações e filhos ao país de adoção, partilhando com todos os brasileiros sua rica herança peninsular”. Ellen B. Geld –“Os Fantásticos Italianos do Brasil – Seleções Reader’s Digest, novembro de 1979.
 

Agradeço a colaboração da professora Maria de Lourdes Gayotto Machia, minha prima

Mais relatos sobre os imigrantes Gaiotto e Bellucci, meus antepassados do lado materno,  em breve.   

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Conversa entre João Sabaiá e Manuel do Rego





Conversa entre João Sabaiá e Manuel do Rego
            - Do livro das Incomodações - Zelita Matraqueira

A breve história começa debaixo de um jatobá carregado de frutos.
- Q’uinda mar lhe pergunte, Sabaiá, sem mardade alguma da parte minha, - donde é qui anda a tar Maria de Zé Gomes?
- Maria,  mais cá num anda, home. Maria é coisa de rio, moça qui vira cobra d’água. Ind’onte vi a serpentinha  na pió das horas do tempo, vestida co’as roupa que Eva deixou na porta do Paraíso. Desceu boiando pras banda donde o rio e a curva fazem cabeceira pra mor de sentir perfume da flor do jambeiro-vermelho.
- Conte mais, home, conte... insistia Manuel. Sem as roupa de baixo?
O homem estava curioso de só se ver.
- Acha que eu minto pra ocê, Manuel?Espanto num me fartô de vê aquela moça linda levada nas água da tempestade, sem roupa, nem de cima nem de baixo, só uma frorzinha amarrada...
Foi’ntão que ela virô aquels  zóinhos pretos de jabuticaba e com riso matreiro caçoou de eu:
‘Medroso!
– Quem boia pra cima de água
Num tem medo de correnteza.
Só se afoga e morre nela
Quem num sai da profundeza.’
Etelvina, moça prendada e estudiosa, filha de Manuel do Rego que escutava a conversa, saiu com esta:
 Queria ser iguarzinha Maria!
 Áarah,  toma tento, peste de menina. Vórta pra casa e vê se num sai mais de  dentro! Te vejo no quarto do fundo!
Etelvina correu pra dentro do quarto do fundo e os dois, João Sabaíá  e Manuel do Rego  continuaram a prosa, a falar de Maria, filha de Zé Gomes.
- Nada de mardade, diziam com ares satisfeitos, é só constatação.  Que caia um desses fruto cascudo em nossa cabeça se é que assim não é.


quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Ilhas desertas



As ilhas desertas retêm a tarde no voo da gaivota

e o lamento das ondas nos corais.

Nas saias da noite refletem cidades celestes e

dançam cirandas com algas e estrelas-do-mar.  

Ilhas desertas - Madeira - Portugal - Rui Gonçalves da Silva
 As ilhas distantes não refletem a luz de led,
retêm constelações e horas intermináveis de beleza.

Um saveiro azul

me leva a visitá-las sempre que o  sono não vem.

Ilhas longínquas sonham saudades 
de mares distantes a navegar.

sábado, 4 de novembro de 2017

Um breve conto de amor



Um breve conto de amor



Era novidade. No pequeno vilarejo, todos queriam ver e falar da bela moça  que chegara de trem ao entardecer.

Seu vestido longo e vermelho lembrava uma pintura rupestre.  Rendas escondiam seu colo alvo, macio, exuberante.

Luvas curtas deixavam parte dos punhos à mostra e seu rosto, escondido pelo véu transparente do chapéu claro lembrava um Modigliani; alongado, olhos rasgados, tez clara.

Passeava pela cidade com a desenvoltura de quem sabia a que viera.

Sua bagagem de mão, uma pequena frasqueira em couro prateada, com certeza guardava o frasco do  suave perfume que exalava de seu corpo por onde passava.

A passante de Charles Baudelaire talvez se aproximasse dela com naturalidade, mas as mulheres e moças do vilarejo não se continham em fofocas e maledicências.

Na hospedagem, a mulher se identificou e pediu para ocupar o quarto 32. Pediu uma ligação local e logo um cavalheiro vestido de preto, com chapéu vitoriano apareceu na recepção.

A mulher correu ao seu encontro e se abraçaram como se fosse a última coisa que fariam na vida.

Passaram a noite no quarto 32 da hospedaria.

De manhã, o homem pediu nova  ligação. 
Um Ford preto do final do século  XIX, muito bem conservado veio  para conduzir o misterioso casal. O chofer elegante cumprimentou a bela mulher que aguardava,  sentada em uma velha poltrona. Sua delicadeza e seu vestido vermelho contrastavam  com o fundo escuro do couro; de seu rosto, coberto pelo véu,  irradiava  uma luz intensa

A conta foi acertada pelo cavalheiro de chapéu vitoriano e partiram em seguida.

A senhoria  correu a chamar a  camareira para irem ao quarto onde se hospedaram os amantes.

Encontraram sobre a cama perfumada  apenas uma pluma do chapéu e um bilhete que dizia:

“Vocês são os mesmos que aqui ficaram quando parti aos quinze anos, aves necrófagas que sobrevoam sobre as  múmias de suas maldosas crenças e preconceitos.Neste quarto me hospedei quando parti pobre e melancólica. Muito chorei e aqui não mais voltarei."

Um perfume suave, misturado ao cheiro do amor da noite entorpeceu as duas mulheres que caíram ao chão,  desmaiadas, uma com o bilhete na mão, a outra com a pluma do chapéu sobre o coração. 
Horas mais tarde, toda a cidade ficou sabendo do ocorrido.  

        Imagem : Fonte: Blog Memória Vintage.

         

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Conversa com meu Anjo

    
                                   Fra Angélico (1395 - 1455 ) - pintor da fase inicial do Renascimento.


Conversa com meu Anjo



Para começar, sei como você é, meu Anjo.

Um Ser de Luz, de beleza indescritível, presença protetora e amigável; ri e chora comigo, sabe se estou triste ou alegre.

E me escuta, por isso falo com você tão natural e facilmente.

Conheço-o desde que nasci e você me conhece desde muito antes. Ensinou-me a lidar com os seus mistérios, porque sem eles, Anjo nenhum existiria.

É quando estou no mais alto ou no mais baixo das minhas dimensões humanas que mais preciso de sua proteção, de seus braços de Anjo abertos para mim, de suas mãos seguras e firmes a me guiar. No mais fundo dos abismos ou no mais alto dos céus da minha condição humana, na subida e na descida das emoções e afetos que mais fico vulnerável e necessito de sua Presença.  Não sei andar sozinha, preciso muito de você, meu Guia.

Suplico que seu olhar divino e iluminado me olhe para que os olhares humanos sejam compreendidos e deles eu não fuja, pois também meus olhares são demasiadamente humanos.

Acompanhe-me em minha jornada terrena, seja ela longa ou breve. E depois, ah,  depois, quem sabe?

É sempre no agora que preciso de você, e aqui.

Espero por você, meu Anjo, agora, agorinha mesmo...

Amém!

"Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam." (Clarice Lispector)