quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Novo dia

                                 
                                         Morning on the Seine near Giverny - C. Monet





Ela se ausentou como quem não mais quisesse voltar.

Despediu-se em qualquer manhã,

em alguma tarde quente ou talvez na noite.

Aflita como alma insone,

partiu  como quem parte de si,

e em partes, longe daqui

distanciou-se. 

Ausentou-se de nós que tanto a queríamos.

  -O querer de alguém

traz de volta os que partem por sérias razões.

Razões de sobra ela tinha para não voltar.

Foi a noite

quem  lhe seduziu

    - coisas  se confundem na noite.


Sérios  motivos tinha para não voltar,

mas  deixou-se cair na noite e no dia.

Generosa, fez-se de lágrimas,

rolou  seu pranto sobre a aridez da terra

fez um dia novo de graça e  esperança

e novamente partiu.

          Por pouco ou por muito tempo, quem sabe?

Nós que tanto a desejamos,

Pudemos conhecer melhor seus humores

     - a chuva tem motivos de sobra para não voltar –

É melhor não magoá-la tanto,

ela pode, um dia, não mais querer voltar.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Cinema São Francisco de Cerquilho





                                                    Foto: Antigo Cinema São Francisco
                                                    de Cerquilho/SP Do livro sobre a
                                                    Cidade de Cerquilho/SP
  


E por falar em cinema...

Parte da minha infância e  toda a adolescência foram marcadas por cinemas e filmes. Período próspero da indústria cinematográfica no exterior e aqui no Brasil, vivemos,  nas décadas de 1950 e 1960 até o final dos anos 1970, a fase de ouro dos cinemas de rua.
Encontrei em um blog sobre cinemas de rua de 1960  as seguintes  informações: Fundado em 1951, Cine Teatro São Francisco de Cerquilho, da Prop. Emp. C.A. Stape Ltda., Rua Dr. Soares Hungria, 220, com 350 lugares, dois aps de 35m/m, funcionando quatro dias na semana, média anual de 256 sessões e 26.360 espectadores.
Cidade de pequeníssimo porte, Cerquilho já tinha, em 1951, o seu cinema com público fiel. Era lá que nós, crianças e adolescentes da época passávamos nossas tardes de domingo. Os filmes das sessões noturnas eram classificados por faixas etárias de 14, 18 e 21 anos e o juizado de menores era dos mais severos, sempre de plantão no pequeno saguão de entrada, a conferir nossos documentos antes de chegarmos às cortinas vermelhas. Que mico ter que devolver bilhetes por falta  de alguns meses na idade!
Adorávamos os faroestes americanos e italianos –  lembro-me bem das cintas-ligas pretas e vermelhas das bailarinas do Velho Oeste e das maravilhosas trilhas sonoras de Ennio Morricone como a do filme The good,  the bad and the ugly, com Clint Eastwood jovem e bonitão, Lee Van Cleef e Eli Wallach.
Ocorria muitas vezes de sairmos de Cerquilho para assistir a filmes em cinemascope no majestoso Cine Bandeirantes de Tietê, pois em nosso cinema não havia a tela apropriada. 
Das nossas matines no Cine São Francisco, não dá para esquecer de Mazzaropi, Oscarito, Grande Otelo e Zé Trindade, O Gordo e o Magro,  Charles Chaplin e algumas importantes produções nacionais como Vidas Secas e O Pagador de Promessas.  
Saímos do cinema com nó na garganta e olhos úmidos de lágrimas quando assistimos a Marcelino Pão e Vinho e, numa tarde quente de domingo, passaram, com a cantora argentina Libertad Lamarque, um  drama  antigo e sinistro, tão triste  que tive sérios enjoos. Até hoje tenho tonturas ao ouvir a bela voz da cantora. Não fui a única, a meninada toda saiu do cinema séria e  cabisbaixa. É óbvio que preferíamos os bangue-bangues, as chanchadas  do cinema nacional e as belas produções dos anos 60 e 70.  
Às imagens e aos ritos do cenário do nosso cinema acrescento, com saudades, a moça da bilheteria, a postura elegante do gerente, as lentes do juiz de menores, o lanterninha que nos conduzia no escuro até as poltronas, o técnico de projeções e o som dos projetores na parte superior da sala. Inúmeras vezes, por falha técnica ou nas fitas muito rodadas,  as projeções eram interrompidas e acendiam-se as luzes. Imaginem o fuzuê: casais de namorados com sorrisinhos indisfarçáveis, ui!    
Nosso pequeno mundo era invadido por cavaleiros, heróis de guerras, lindas heroínas românticas, santos, comediantes, cantores e gente comum como nós,  com tanta coisa nova a nos mostrar e dizer,  cheirinho de  drops de anis e hortelã, chicletes de banana e a deliciosa pipoca quentinha do Sr. Antoninho Ferrari. Quem viveu a experiência sabe do que estou falando!
Elvis Presley nos deixou lembranças incríveis. Quanta inveja do cantor sentiam os rapazes ao verem suas meninas prediletas em delírios quando o astro do rock’n’ roll  aparecia na tela com suas calças justas, tocando guitarra,  dançando e cantando. Sua linda voz e olhar romântico deixavam as plateias femininas endoidecidas. E tomem ovos! Alguns mais furiosos chegaram a atirar ovos em direção das frenéticas garotas.   
É desaconselhável e de mau  gosto  atirar ovos em alguém, mas éramos uma grande família em nossa pequenina cidade e ninguém ficou magoado, sem contar que era muito mais divertido ver a performance de  Elvis na tela com os garotões se contorcendo de ciúmes  nas poltronas. 
Coisa de cinema, não há dinheiro que pague a pureza dessas endorfinas!

Texto publicado na Revista Vitrini - Fevereiro de 2014